Outro dia, lembrei-me da cerimônia japonesa chamada chanoyu, a famosa cerimônia do chá. E não foi tomando chá. Foi fazendo a barba.
No Japão, a cerimônia do chá é um evento formal onde basicamente um anfitrião recebe convidados para tomar chá. O grande diferencial da cerimônia é a atenção plena a absolutamente todos os detalhes envolvidos. Desde o cultivo das plantas que servirão como chá, até as vestimentas tradicionais, os arranjos de flores, os tipos de louças, os incensos, tudo é preparado com cuidado e esmero. O anfitrião segue um ritual de gestos e frases ao dirigir-se aos convidados. Esses, por sua vez, também têm formalidades a serem obedecidas de modo que a cerimônia siga toda a formalidade e tradição. Todos estão atentos, o tempo todo.
Acredita-se que todos os procedimentos da cerimônia japonesa do chá possam passar de uma centena, de modo que o estudo da cerimônia não acaba nunca. Parte da filosofia envolvida no ritual é que, apesar da tradição e dos formalismos, nenhuma cerimônia conseguirá ser igual à outra.
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Estava estreando uma lâmina de babear nova. Todo o cuidado é pouco. Cortar o rosto é bem fácil.
Conforme uma lâmina de barbear vai sendo utilizada, seu fio vai se perdendo, e uma pressão mais forte precisa ser impressa contra o rosto para o intento de barbear-se. Embora bem leve, essa pressão vai aumentando gradativamente, e não raro os cortes no rosto acabam sendo ocasionados por lâminas já usadas, mesmo. Isso ocorre exatamente pela distração. Por estar no piloto automático. Por não estar presente.
Na ocasião do barbear com a lâmina nova, iniciei um pequeno e cuidadoso ritual. Tudo para não haver cortes no rosto. Passei a espuma no rosto com cuidado, examinei a lâmina nova, percebi que eram na verdade três lâminas em um aparelho. Cheguei a identificar uma estranha beleza no design e no pequeno brilho que as lâminas geraram ao passar pelo ângulo da lâmpada do banheiro. Foram criadas para cortar.
Fiz a barba lentamente. Devagar. Meu momento. Com atenção plena.
Últimos retoques. Nenhum fio. Enxáguo o rosto, lentamente, Vejo-me no espelho, mais tempo do que o normal. Nenhum corte. Eu comigo mesmo. Eu presente ali. E naquele momento. E apenas ali, naquele momento. Atenção plena.
Então, lembrei da cerimônia do chá.
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Das três dimensões do tempo, o presente seja talvez o que mais requeira atenção para conseguirmos estar nele. Frequentemente, estamos no futuro, nos afazeres do futuro, no que faremos na próxima hora, no próximo final de semana, no próximo mês... devemos ter claro o que é viver nosso planejamento e o que é viver apenas ansiedade. Ou estamos frequentemente no passado. Nas lembranças do que deu errado, nos traumas, nas sombras... também quanto ao passado, é necessário sabermos diferenciar o que é experiência que nos auxiliará no presente e o que é apenas combustível para a fogueira da depressão.
Estar presente no aqui e agora é talvez o princípio fundamental para o alcance das metas que temos na vida. Na verdade, não há outro lugar em que possamos estar que não seja no aqui e no agora. Porém, quando não há atenção plena no presente, isso nos leva a produzir demais sem resultados expressivos, ou não produzir quase nada, com resultados praticamente nulos. No fundo, não viver o presente com atenção é não saber muito bem o que estamos fazendo.
Não faz muito que estamos nos dando conta disso. Mindfulness. Atenção plena.
Conceito esse que os orientais estão alguns séculos na nossa frente.
Grato pela confiança,
Marcelo Pelissioli