- Minha vida tem sido uma
bagunça, não consigo ter tempo de me dedicar aos meus objetivos. Quando tenho,
preciso dar conta de resolver problemas da casa, consertar coisas quebradas e fazer
compras. Minha situação financeira, há muito tempo, é um looping sem fim:
assim como entra dinheiro, sai dinheiro, e não sobra nada. Além disso, meus
filhos consomem muito do meu tempo, e a relação com minha mulher está evoluindo
das constantes brigas para uma indiferença terrível entre nós, sem contar que,
por questões de saúde, minha sogra virá morar conosco na próxima semana.
O estudioso, após ouvir o sujeito
e manter seu olhar sobre ele como um todo, respondeu o seguinte:
- Arrume um bode emprestado, e o
deixe em sua garagem por uma semana. Volte aqui para falar comigo depois desse
tempo.
O sujeito, confuso, sem muita
esperança e ainda mais desnorteado do que chegara, resolve procurar o conhecido
de um conhecido que tinha um bode. Assim que conseguiu convencer o dono do bode
do empréstimo, levou o bicho para casa deixando-o em sua garagem, conforme o
estudioso sugerira. A condição do empréstimo era que o animal fosse bem alimentado
e bem tratado.
Uma semana depois, sujeito e
estudioso estão novamente frente a frente:
- “Então”, pergunta o estudioso, “como
foi a semana com o bode”?
Responde o sujeito, entre
irritado e desanimado: - Foi terrível. Com todo o respeito, não vejo como o
fato de levar um animal daqueles para minha garagem poderia resolver alguma
coisa em minha vida. Tive que arrumar tempo de alimentar o bode todos os dias, sem
contar ter que limpar toda a sujeira que esse bicho faz. Claro, as crianças
adoraram, pediam para tirar fotos e até deram um nome para ele: Severo, pois
achavam que o bode tinha os trejeitos de um dos professores dos filmes do Harry Potter. Para
piorar, minha sogra veio morar conosco e, embora não tenha nada contra ela, é
mais uma preocupação para mim no meio dessa confusão toda. Espero hoje já
devolver essa criatura fedorenta ao seu dono e acabar com esse pandemônio.
O estudioso, com o mesmo olhar
que parecia enxergar o sujeito além da materialidade e nitidamente praticando
uma escuta mais profunda que a superficial do dia a dia, responde:
- Bem, o bode agora passará a
viver não mais dentro da garagem. Passe a deixá-lo dentro de casa. Faça isso essa
semana, e volte aqui na semana que vem.
O sujeito riu com escárnio de sua
própria desgraça. Como faria com que um bode pudesse viver dentro de casa? Já imaginou
que esse poderia significar um ponto final no casamento.
Chegando em casa, explicou à mulher,
através das fragmentadas linhas de comunicação que ainda debilmente se mantinham
entre eles, que colocaria o bode dentro de casa. E, apesar dos protestos
inflamados da esposa, assim o fez. Desde então, passou-se uma semana.
Voltando ao encontro com o
estudioso, o sujeito nem espera por nenhuma pergunta. Já inicia sua fala, em
tom prostrado, sem expressão alguma de capacidade de indignação:
- Como eu imaginava, minha mulher
enlouqueceu com o bode dentro de casa. Acusou-me de tudo que possas imaginar. Tivemos
que passar a semana consertando tudo o que o bicho destruiu, e montamos um
plano para que ela faça a limpeza enquanto eu realizo os consertos. Ele pula
sobre os móveis, quebra a decoração, mastiga cortinas, é uma verdadeira
anarquia. O cheiro dele é terrível, a sujeira é tanta que não sei de onde estamos
arrumando tempo para limpar tudo e manter a casa com alguma dignidade. Precisei
comprar ração para bode, e esse gasto inesperado está pesando mais ainda no meu
orçamento. Sinceramente, não sei qual é o objetivo disso tudo, mas já chega,
não?
- “Não”, reponde o estudioso. “Agora
leve o bode para viver no seu quarto.”
O sujeito sai sem nem mesmo se
despedir ou agradecer. Sabia apenas que precisaria voltar na semana seguinte
para falar com estudioso, por uma questão de honra, para mostrar a ele o quanto
aquele bode tinha sido o tiro de misericórdia em tudo que tinha como objetivos
de vida, e o quanto o estudioso seria responsável pelo seu fracasso. Mesmo
assim, por alguma razão, levou o famigerado bicho para o próprio quarto.
Como o sujeito já imaginava, o
casamento ficou por um tênue fio. Se não fosse pela presença da sogra,
acredita, sua mulher pegaria suas amadas crianças e sairia de casa, talvez para
sempre. A rotina de arrumar tempo para consertos e limpeza seguiu, bem como a
manutenção do regime de exceção combinado com a esposa para suportarem a
manutenção da decência das condições de convívio da casa com o bode arruinando
e emporcalhando tudo. Seguiu também a afeição das crianças pelo bicho, que
rendeu, por incrível que pareça, alguns momentos de proximidade entre pais e
filhos na relação com o bode, pois as crianças gostavam de dar-lhe a cara ração
própria para a espécie, além de brincarem e pedirem informações não apenas
sobre bodes, mas sobre outros animais também. Até mesmo a sogra passou a ajudar
nas novas lides da casa, dentro de suas limitações de saúde. Toda ajuda era
bem-vinda naquele cenário caótico.
Passados novos 7 dias, o sujeito
vai encontrar o estudioso, decidido que será pela última vez. Chega daquela
palhaçada.
- “Devolva o bode, e volte aqui
semana que vem.” Disse o estudioso.
- O sujeito agradece aos céus
pela ordem e, de pronto, esquece a convicção de não mais encontrar o estudioso.
No mesmo dia, devolve o bode ao conhecido de seu conhecido, que se surpreende com
o brilho do pelo e o excelente aspecto do animal, que fora, obviamente, muito
bem tratado.
Passada mais uma semana. Assim
foi o derradeiro encontro entre o sujeito e o estudioso:
- Querido amigo, chegastes aqui
para falar comigo há um mês, sem tempo para se dedicar aos teus objetivos, sem conseguir
cuidar bem da tua casa, com uma situação financeira bastante instável e com uma
família que carregavas como um fardo. Como está hoje?
Responde o sujeito:
-Depois que devolvi o bode, tudo
mudou! E para muito melhor! Não sei como, mas percebi que priorizar certas coisas
faz com que apareça mais tempo para as realizações que realmente importam, como
que por encanto. Agora, sem ter que priorizar os cuidados com o bode, tenho
muito mais tempo! Começou a sobrar dinheiro no final da semana, misteriosamente.
Por coincidência, um valor bem próximo da cara comida de bode que eu comprava.
Minha relação com as crianças melhorou muito, pois, não sei como, passaram a
demonstrar muita curiosidade sobre animais, o que tem sido o tópico principal
de nossas brincadeiras e conversas. Meu casamento mudou da água para o vinho,
pois não precisamos mais investir todo nosso tempo e energia limpando e
consertando coisas que o maldito bode destruía. Agora, sobra mais tempo para
nós, e com mais qualidade, já que o bode não está ali para nos molestar. Até o
fato de receber minha sogra em casa por alguns dias deixou de ser uma
preocupação para se tornar um prazer, pois ela segue colaborando como pode com
os afazeres da casa, sem contar que as crianças adoram a companhia da vovó. Toda
essa mudança está me beneficiando para que eu consiga manter minha cabeça e
minhas atitudes em meus objetivos, os quais já estão em planejamento, inclusive
alguns já entraram em ação essa semana mesmo. Bode desgraçado, se não fosse
ele, minha vida estaria muito melhor do que já está hoje!”
Cada um de nós precisa reconhecer
seus bodes em suas vidas. Todavia, esse ano, tivemos todos um grande bode em
comum. Quando devolvermos esse bode virulento, olhemos para nossas vidas,
nossos objetivos, nossos padrões sabotadores que vão se repetindo e nossas relações
com nosso meio e compreendamos o quanto temos de possibilidades de sermos mais
e de sermos melhores desde já. Identificar e tratar desses bodes é o primeiro
passo.
Esse bode não quer ensinar nada.
Porém, paradoxalmente, cabe a nós aprendermos as suas lições.
Um novo ano de muita saúde,
felicidade e prosperidade para você!
Grato pela confiança,
Marcelo Pelissioli
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